Olho para os dossiers de Direção de Turma dos meus colegas. Estão todos direitinhos, organizadinhos, bonitinhos, arrumadinhos… O meu está em branco, só com os separadores… Tenho uma data de papéis soltos dentro de uma capa à espera de serem arquivados… Atrevo-me a comentar a minha situação e as colegas, porreirinhas, tranquilizam-me: - “Com tempo, Dalila, isto é aos poucos!” -, enquanto arquivam mais uns documentos nos já volumosos dossiers que são os delas…
Vou dar uma espreitadela aos meus mails. Já recebi 97 na minha caixa de correio institucional iniciada a 8 de setembro… Foram rápidos a criá-la. A escola é até bastante eficaz com essas coisas. Não me posso queixar. Disponibilizam tudo. Têm tudo organizado, esquematizado, prontinho para ser usado. E não deixam dúvidas. É assim e pronto. Gosto que seja assim. O que não falta por aí são coordenadores ou diretores que são ambíguos, não esclarecem, contradizem-se, e na hora em que as coisas correm mal, somos nós que não soubemos “interpretar” ou então fomos mesmo incompetentes…
Os meus colegas são prestáveis e parecem-me todos muito cumpridores e profissionais. Isso é bom, é ótimo, mas deixa-me ainda mais nervosa. Era tão bom poder culpar alguém por andar à nora! Não… Já todos me enviaram vários documentos… regimentos (tudo tem um regimento), papéis relacionados com as tutorias, com as necessidades educativas especiais, com a equipa para a prevenção da indisciplina, testes diagnósticos, plano anual de atividades… Ontem, andaram em trocas de mails sobre o PAA. Será que também queriam a minha opinião? Não consegui arranjar tempo para me debruçar sobre aquilo…
Ai, as siglas! Na nossa profissão, gostam todos muito de siglas e de acrónimos…Consegui perceber alguns: aqueles que também se usam nas outras escolas. Tenho apontado os outros para pesquisar depois… Já repararam que quase todos têm um P? Depois… Faço isso depois… Há coisas mais urgentes para já!
Ao meu lado, uma colega que está nas duas escolas do agrupamento. Agora tem de ir para a terceira escola que ela conseguiu para completar o horário. Tem tudo calculado, esquematizado, programado. Não pode falhar nem distrair-se um pouco. “Tem de ser!”, diz ela.
Tenho que me encontrar com a professora de Educação Especial para falar dos vários casos da minha Direção de Turma. Apontar as alíneas. Tenho que apontar as alíneas e enviar isso aos meus colegas do Conselho de Turma.
Logo, tenho reunião para perceber o funcionamento da Equipa para a Prevenção da Indisciplina. Não me posso esquecer!
Deixa-me ver se não tenho mais alunos para as tutorias. Pediram-me para confirmar isso, já me esquecia…
Deixa-me ir ao cacifo buscar o meu bloco de notas para ver o que me falta. Deram-me a chave ontem. Tenho um cacifo! Há anos que não tinha! Espera, qual é a chave? É esta! Sim, é esta! E agora, qual é o cacifo? Não me lembro do número… Apontei-o mas está lá no bloco de notas dentro do cacifo… Bolas… Vejo depois…
Tenho que pedir os manuais às editoras. Faço isso por mail mais logo. Até é rápido… Mas tantas coisas rápidas juntas e passa-se o dia… Ainda bem que as minhas colegas me emprestaram os delas enquanto chegam e não…
Deixa-me ver se está muita gente na secretaria. Não. Boa! Vou aproveitar e ver o que se passa com as horas de Direção de Turma que ainda não tenho no sistema para sumariar. Ah! Chegou o cartão da escola. Aproveita também para o levantar, Dalila…
“A tua Gabriela voltou a dar-me uma resposta torta!”, diz-me uma colega quando saio da secretaria. A “minha” Gabriela… Pois, são meus… Vão ser os meus João, António, Manel, Francisco… As minhas Ana, Sofia, Teresa… A “minha” Gabriela… Caramba, não me recordo de nenhuma Gabriela! Qual delas é? Sorrio. “Eu vou falar com ela!”, acabo eu por dizer. “Não, não vale a pena! Era só pra saberes!”…
Falando em maus comportamentos, tenho que redigir as participações dos miúdos do CEF. Aquelas aulas com eles dão cabo de mim! Ainda tenho que fazer fichas para eles para a aula de amanhã… Não me posso esquecer que a reprografia está fechada na hora do almoço. Tenho que arranjar maneira de as fotocopiar de manhã no intervalo. Pode ser que não haja muita gente ou estou tramada…
“Dalila, já conheceste a colega Maria? Ela andava à tua procura. É a DT dos miúdos a quem dás TT (Olha, este acrónimo não tem “P”!) e como costuma ser uma disciplina dada pelo DT, ela queria falar contigo para se organizarem em conjunto!”. O colega que me aborda é super prestável. Já me ajudou com pequenas coisas várias vezes. Quero dizer o nome dele, mas não me lembro… Bolas… Ele sabe o meu nome e eu não sei ainda o dele… Bolas… Limito-me a sorrir “Não, não conheci ainda…”. E ele continua “Eu já lhe disse quem tu eras, quando ela chegar à sala dos professores, apresento-vos!” E eu quero dizer “Obrigada, João ou Manel ou Pedro ou Alziro”, mas fico-me pelo “Obrigada!” sem me conseguir lembrar do nome…
Está na hora da minha aula. Corro os vários cacifos com a chave até encontrar o meu. Retiro de lá os testes diagnósticos e corro para a sala. Separo os alunos e começo a distribuir as folhas. Ai, não é este! É o outro! Recolho as folhas e distribuo o teste adequado. Que figurinha a minha! Foca-te, Dalila! Concentra-te!
Já na sala dos professores, conheço a Maria e falamos do tal TT da sua DT. Uma outra colega vem ter comigo. Quero tomar um cafezinho, mas acho que não vou conseguir. “Tu é que és a Dalila? Eu sou a mãe da Rita da tua Direção de Turma!” Quem é a Rita? Oh, valha-me Deus! Sorri! Sorri, Dalila… Ai, não, o assunto é sério. Pára de sorrir! Foca-te! Concentra-te! Ouve! Esquece o café!
De volta aos meus mails, leio os assuntos antes de abrir. Tanta oferta formativa. Devia ler isto com atenção, mas não tenho tempo. Tantas ofertas de atividades para os alunos. Também devia ler isto com calma, já que tenho Direção de Turma… Mas… Prioridades, Dalila! Abro tudo aquilo que está relacionado com a DT. É tanta coisa que até me assusta, mas acabo por me sentir amparada. Está aqui tudo… Abro um documento “Calendário para realização de embelezamento da escola”. Fico perplexa. A medo, pergunto à minha colega no computador ao lado “Desculpa, que documento é este? Sabes?”. Muito simpática, responde-me “Temos que marcar uma vez por mês, acho eu, no Tempo Turma uma hora para cuidar da escola. Pode ser apanhar lixo, decorar uma sala, coisas assim…”. Fecho a boca para a abrir de novo, desta vez com um sorriso “É uma iniciativa muito louvável!”, acabo eu por dizer, antes de voltar a fixar o meu ecrã… Por instantes, apetece-me bater com a cabeça na parede, mas há mais pessoal na sala e acabo por conseguir conter-me…
Tenho que agendar a minha primeira reunião com os Encarregados de Educação… Ainda não tenho dossier, mas tenho que tratar disso… Não posso deixar arrastar. Mais uma vez, tenho ordem de trabalhos já pronta para essa reunião. Boa! Vou ver para redigir a convocatória. Com tantas coisas para fazer, é bom que esteja tudo assim: mecanizado. É só fazer e pronto! Há um ponto que é "Tomada de conhecimento dos documentos referidos na alínea q) do artº 7º da Lei nº 51/2012 de 5 de setembro"… Que é isto? Ah! Regulamento Interno, Estatuto do Aluno… Claro, claro…
Na hora de TT, trato da eleição do delegado e do subdelegado de turma. “Professora, estávamos a pensar fazer a nossa viagem de finalistas em Espanha. A escola dá-nos autorização para sairmos do país?” Respondo que vou perguntar, e só penso “Mas a viagem de finalistas também tem a ver com a escola?” e tremo só com a pergunta…
Quando chegar a casa, tenho que enviar os conteúdos dados na minha disciplina à DT daquele miúdo que tem faltado… E tenho que fazer a ata da eleição do delegado… E as fichas de CEF…. Se sobrar tempo, preparo a aula para o 9.º e a do 8.º… Se não sobrar tempo, abro os livros e sigo as instruções dadas pelas editoras sobre os passos da aula… As editoras também são super organizadas hoje em dia…Está tudo mecanizado! Felizmente… Sim, felizmente… É mecanizar tudo para se ser eficaz… Assim, consigo fazer as coisas… Consigo, sim… Mecanizar! Mecanizar!... Alguém me explica este sabor a ferro que me incomoda apesar de tudo?
Claro que sim, é o sabor de quem é obrigado a deixar a sua VP (vida pessoal) para último lugar. Isto é, se sobrar algum tempo como é óbvio!
ResponderEliminarao ler senti a correria do dia a dia e o peso da responsabilidade do que é hoje ser-se professor, senti o sufoco das tarefas que se prologam para além das aulas, o querer-se respirar a vida mas que ao invés disso se respiram tabelas, números letras papeis etc Senti o cansaço de um sono que não chega..as horas a passar e os pensamentos a consumirem , faz-se uma introspecção do que se passou, onde se errou,como melhorar etc e as horas a passarem..perguntando será que consigo aguentar mais um dia ??sinto o corpo cada vez mais cansado parece que vai deixando de ser meu, não me obedece como antes...se gosto de dar aulas ?? sim amo dar aulas, não podia ter melhor profissão, faço-o com amor e acredito que é esse amor que me dá forças para que eu possa cumprir esta missão até ao fim, mas...não somos máquinas.
EliminarParabéns pelo texto! Sinto exatamente o mesmo...
ResponderEliminarMuito bom. É tudo isto é mais qualquer coisa (administrativa). São estes os professores do séc XXI. E ensinar? Bem isso pouco importa.....
ResponderEliminarJá repararam que ensinar é o que menos interessa? Depois de "embelezar a escola" já não resta tempo.
ResponderEliminarExactamente.
EliminarSim, e eu dou profissionais. não tenho livros mecanizados :( e tenho uma bebecas de 3 anos. E o meu marido trabalha a 200km e tem de lá ficar os turnos dele são de 3 em 3 horas... E eu tenho uma incapacidade provocada por um acidente em serviço provocado pelo excesso de serviço da própria escola que me está a degradar mais mas cada vez me exigem mais e mais... na escola onde estou fazemos algum serviço que era feito nas anteriores por funcionários...
EliminarRevejo-me completamente neste texto. É assim que me sinto. Obrigada colega. Respiremos fundo!!!
ResponderEliminarEste politicos são uma VERGONHA. Vivemos no país dos papéis. Andamos "quase" todos aos papeis.
ResponderEliminarHoje podemos ler nas capas dos jornais o "ENORME sucesso" nas provas de aferição.
Os pais demitem-se de educar os filhos.
Os Professores preenchem papéis.
Os Ministros "Investigam"
As secretárias de estado tentam limpar a porcaria que fazem
O PM dá o dito por não dito.
Esta é a imagem da EDUCAÇÃO neste pais.
Uma descrição perfeita!
ResponderEliminarIpsis Verbis, Dalila Ribeiro.
ResponderEliminarEscola nova, fazer upgrade para nova mecanização.
O que me vai confortando é que tenho mais colegas como eu, tal e qual, subscrevo todas as linhas, ah, sou do grupo 520 e tb tenho duas escolas, uma delas é no primeiro ciclo, uma perfeita aventura, que já dura há mais de 20 anos, .....
ResponderEliminarA esta hora da noite, ao ler este texto, fiquei tão cansada que até parecia que tinha acabado agora de sair da escola. É mesmo um sentimento sufocante... parece que nunca conseguimos acabar ou avançar com tudo o que temos para fazer, organizar, contactar, apontar, escrever... parabéns por expressar tão bem o nosso sufoco diário.
ResponderEliminarMuito bom o texto e muito realista. E ainda temos que dar aulas ��
ResponderEliminarGenial, Dalila! Tens o toque de Midas. Tens que vir cá mais vezes aligeirar o clima. Beijo grande.
ResponderEliminarTexto muito bom, directo, dinâmico, o retrato -pessoalmente acho -lhe uns toques de caricatura, do professor do 3.º ciclo e secundário. E decerto dos outros ciclos, que não conheço propriamente. Como já sou raposa velha no ensino, muito disto deixou de me abalar. mas as siglas e os acrónimos, Dalila, nunca consegui ultrapassar. Decerto que a maioria dos professores se identifica com este texto. A minoria estará distraída. Parabéns, Dalila!
ResponderEliminarMesmo! Extamente igual! Podia ter sido eua escrever este texto!
ResponderEliminarEnquanto lia interrogava-me se a Dalila não era da minha escola, tal a verosimilhança.
ResponderEliminarExcelente reflexão, merece ser divulg
Se a Dalila mantiver este distanciamento crítico e esta bonomia com humor, aguenta-se!
Lagido
saboroso texto!Afinal não sou só eu!!
ResponderEliminarE tudo isto com 10h letivas ainda se torna mais fantástico!
ResponderEliminarÓ Dalila, dadilaste a dalila de muitos dalilas...
ResponderEliminarDalilabéns!
Parabéns, pelo texto Dalila. Subscrevo na íntegra.
ResponderEliminarA minha indignação vai apenas para a passividade com que a nossa classe aceita tudo isto, como se fosse uma predestinação...
Não será de novo o tempo de agirmos? De passarmos das palavras aos atos?
Vejo os enfermeiros a lutarem por uma causa... E os professores? Onde está a capacidade de mobilização de um grupo profissional que deveria ser um exemplo de cidadania participativa?
E não, não precisamos de sindicatos que apenas olham para os seus umbigos e não imaginam sequer o pulsar das escolas, patente no seu texto...
Deixo esta reflexão.
O que a professora Dalila esqueceu de mencionar são as reuniões de coordenação pedagógica, fora da componente letica (Claro!)!! Na minha escola temos uma média de 5 reuniões, por cada turma que temos. Como tenho 11 turmas... dão 55 reuniões por período, fora as reuniões de Conselho Pedagógico, Diretores de Turma, Conselho de disciplina, reuniões com pais para dar as informações intercalares, reuniões do Conselho da Comunidade Educativa, reuniões de Conselhos disciplinares...ainda falta alguma?? As tantas... são tantas... fora burocracia...vida pessoal?? doenças?? Vamos trabalhar doentes, porque é um luxo faltar!! E se não cumprir a planificação?? Justifica, justifica... O professor elabora n relatórios a justificar tudo e mais alguma coisa?? Outros membros da comunidade??? Nem por isso!!! Professor é o elo mais fraco!!! Trabalha como escravo e cala-te porque ainda tens emprego!!!!
ResponderEliminarProfessores e lutar contra isto vamos? Não chega só lamentos nas redes sociais. É preciso dar visibilidade ao descontentamento. É tempo de resolver problemas.
ResponderEliminarExcelente!
ResponderEliminarBendita a hora em que me aposentei...
ResponderEliminarO professor perdeu a liberdade criativa que tinha. Está amordaçado e preso a múltiplas tarefas inúteis e sem sentido. É isso que os governantes querem: estupidificar-nos.
ResponderEliminarNão é de hoje...não é de ontem...é de sempre! Sempre, sempre e pior ainda a cada ano que passa. Parabéns pelo texto genial...pelas risadas que conseguiu arrancar de mim!
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